(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Descrição

Olhei e era um céu cinza, um pássaro marrom, um sol com pouco brilho e uma árvore verde como uma margarida sem pétalas. Era água escura, ar cinzento, frio. Era uma senhora curva e de cabelos grisalhos em silêncio subindo uma ladeira e uma criança pobre que foi a ela pedir uma moeda. A senhora deu a moeda. Mais tarde era a criança com a mãe a puxando pelo braço esquerdo. A mãe com roupas de um vermelho quase pálido e um cinza quase negro e morto.

Quando olhei bem era um cachorro vira-lata manchado de cinza e branco. Era seu dono e ele. Ele comia.

Quando olhei com bastante atenção era um pôr de Sol bonito que se veria, não fosse o prédio que me impedia de ver o ator principal da cena. Era um conjunto de nuvens mal iluminadas que conferia toda a beleza daquele fim de tarde, e um arco-íris medroso que não tinha coragem suficiente pra se mostrar com esplendor nem dignidade suficiente para existir sem mostrar-se. Se colocava tímido, o arco íris por entre as gotas de chuva e os poucos raios de Sol. Pobre arco íris ao qual Deus esqueceu de impingir saturação. Saturação é a cor das coisas em linguagem técnica de edição de imagem.

Quando firmei os olhos num ponto do céu porque tive a certeza de que lá aparecera uma estrela, não havia mais estrela porque aquela havia se movido e eu ouvi um trovão. Um barulho, na verdade, que não era trovão. Era a estrela que se moveu que na verdade era estrela cadente. Caiu o avião sobre um conjunto de casas e algumas dezenas de pessoas morreram.

A fumaça, como as casas atingidas, era cinza. A morte, como o amor temido, era cinza. A criança carbonizada, como a grávida por estupro, era cinza. A parede, como a roupa de baixo da noiva, não era mais branca, nem vermelha. Era cinza. E nem o sangue da noiva era mais vermelho, como a roupa de baixo do noivo. Era cinza.

Olhando mais certeiro para um pequeno casebre que não fora atingido pela estrela brilhante e cadente, vi a decadente estrela. Uma moça de seus 19 anos, feia. Cabelos desgrenhados, uma blusa justa de mais para seu corpo fora de forma e um olhar lascivo de mais para seu rosto protuberante de marcas. Um sorriso lascivo que não faria jus ao mais esquecido dos homens. Um sorriso que desviaria o olhar do mais bondoso dos santos.

Não quis continuar olhando a imagem deforme do insucesso, do asco e da lascívia desenfreada. E comecei a mirar uma pomba.

Não era uma pomba branca como poucas vezes acontece na Grande Cidade. Muito menos era um corvo urbano. Era uma dessas que comem os restos de arroz dos empregados que deixam a marmita aberta nas praças. Era uma pomba cinza e simples.

Acompanhei o vôo da pomba que acabou por ter seu fim na beirada de um chafariz que, quando foi feito, devia ser muito bonito. Mas que perdeu seu encano com o tempo. A chuva ácida das cidades e a obra dos vândalos pobres das ruas terminaram com a forma original da construção que hoje, de um anjo cuspidor de água que era, tornara-se um bloco de cimento antropomórfico com um buraco pelo qual saia uma pequena quantidade de qualquer coisa esverdeada. Uma fonte velha. A pomba não sabia do anjo e nem o que significava antropomórfico, e por isso permaneceu na beirada imunda da fonte fazendo algo que eu interpretei como uma grande habilidade de se sujar com muito trabalho. E que ela interpretou como banho.

Perto da fonte e da pomba havia uma menina que pedia moedas para os transeuntes apressados. Ela era forte, mas sua imagem de fraca dava pena. Era pequena com seus nove anos e dormia ao lado da fonte todas as noites. Deixava seu cabelo de um castanho claro preso atrás da cabeça de noite e de dia, com a ilusão de que isso a deixava menos asquerosa, talvez até menos suja.

A garota percebia que os passantes às vezes davam moedas, por puro hábito, mas que não olhavam para ela. E algo dizia a mim que ela trocaria as moedas por um olhar. Mas que olhar, se não o meu de mero examinador, aquela menina pobre e feia conseguiria? Talvez o de algum bem-feitor que insistiria para que ela deixasse as ruas e fosse para uma escola, aprender a ler e a escrever. Mas a garota não precisava ler, nem escrever.

A pequena moça não sabia o que vinha escrito nos pacotes de balas que algumas vezes por semana (quando sobrava dinheiro para o investimento inicial) colocava nos espelhos dos carros que estavam sempre de vidros fechados mas, às vezes, abriam um pouquinho para pegar a bala e jogar sempre a mesma moeda, um real.

A menina usava o dinheiro sempre da mesma maneira. Comprava um sanduíche no meio da tarde e comia sentada na calçada, perto da fonte. As migalhas ficavam para as pombas que estavam tão acostumadas à imundice da garota e do local, que comiam as migalhas do chão sujo mesmo.

Perto dali uma outra criança mais ou menos da mesma idade soltava um barquinho de papel na corrente d’água corria entre a guia e a rua. O barquinho andava pouco, às vezes entalava numa pilha de galhos e restos de folhas não varridas. Muitas das vezes também o barquinho era invadido pela sujeira d’água e afundava, a criança era paciente, fazia outro barquinho e colocava na água, com a esperança de que ele chegaria, seco, ainda parecendo um barquinho e ainda sendo de papel, no bueiro.

Ao fim daquela tarde houve uma enchente no mesmo local e o menino, inchado de água e com hematomas pelas batidas que deu contra objetos carregados pela corrente, flutuou morto até o córrego mais próximo.

Veio a noite.