(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Chá da tarde




Eu respirava o ar da tua boca
Você nunca notava e me perdia
E me batia e se perdia me atirava
E se atirava eu me escondia e me chorava

E a flecha embebida de veneno
Que perfurava, me furava e atravessava
Era ainda incômodo pequeno
E eu ainda me feria e porque amava

Eu perseguia tuas pegadas num terreno
De cacos de vidro ensaguentados
Mas mesmo meu temor era pequeno
O sangue era expurgar os teus pecados
Com meus pés, teu alívio ameno,
Era o vermelho a cor do ser amado

Sob um lençol de estiletes revirados
Me mexia em completo pesadelo
E teu sonho leve era um grande desespero
Para o meu interior, tão desvelado

Você já conhecia cada parte
Cada linha, cada sombra, cada pelo
E teus cílios de água viva, em meus anelos
São meus amores, os meus beijos a queimar-te.

Você me foge, e me ficam as lembranças
Queimaduras no meu corpo de criança
Cada espelho que me tem reflete meu horror
E eu me olho,
no meu banho,
vermelho,
águas de amor.

E eu me olho,
no meu banho,
vermelho,
águas de amor.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

cadafalso



Força a poesia
Como quem força um filho
Com o corpo todo
Dos pés à alma.

Deixa-se doer e machucar
Deixa sair teu sangue com tua cria
Deixa que te mutile teu poder criador
Em nome da criatura que pode te matar

A dor do parto é a dor da morte
Porque é vida que se dá
É a luz, e não só à luz que se dá.

Então força a poesia com teu suor, tua lágrima, teu sangue e teu sêmen.
E deixa que ela escorra de ti, que ela socorra de ti, que ela corra de ti.
Que ela exploda de ti.

Permite que o teu cansaço seja a energia dela
A poesia não pede amor, nem sentimento algum.
Ela quer tuas letras, tua tinta e tua alma.
Não pensa nos teus gostares, pensa nos teus poderes.

Dá a ela o que ela quer, como a um monstro e a uma mãe.
Nega a ela o que não queres dar, como a um cão e a uma filha.

Pari tua patricida
Chora teu reflorescer
Esconde os olhos da feiura do recém nascido
Lava tua poesia, limpa-a, e então sorri e a afaga enquanto ela te morde.
E depois, se for bela, agradece-te a tua competência.
Por que de tudo o que se fez, só a beleza dela importa.
O que se perdeu, o que se deu, o que lhe foi roubado, nada é teu.
Só a beleza dela importa.

É teu o poder, ela é tua criatura e tende a crescer e dominar-te
Tende a crescer e devorar-te
Tende a fazer de tudo, a devorar tudo, a transformar tudo
Em pureza, em brilho, em som, em parte
Tende a fazer de tudo grão, poeira, vento, tende a calar-te.
E deseja mais que à vida, tua vida, deseja mais a arte.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009


Meu mundo não é esse de fora das capas.
É o de dentro, mas não é o das letras,
É o de dentro.
Mas de dentro mesmo.

domingo, 6 de setembro de 2009

Novelo


Nesta vida não ganha prêmio quem age bem (ninguém age bem).
Quantos foram os que vi darem com a cara no muro
Por serem bons e retos e certos e justos?

Dá-se bem quem tem que se dar
Sem haver a justiça ou a falta dela
Porque tudo é a mesma coisa desagradável.

Quanto reclamam, meus amigos, das vidas que têm desde o nascimento.
A chamam-na de tudo, e como mais alto insulto, de injusta.
Digo-lhes com um sorriso meio corro...ído no rosto:
-Graças a Deus, não é?
E eles concordam em constrangido silêncio imóvel,
Porque todos já meteram-se em mais erros do que poderiam pagar na vida que lhes sobra.

E meus amigos são sábios e santos, como quaisquer amigos de qualquer um qualquer,
Pois quem não cometeu tantos erros
Não é mais que quem não os admite.
E é tão sujo! Tanto-quanto.

Forquilha


A escolha que tenho fica entre
O pecar do beijar um beija-flor de pedra
E o pecar de engolir uma bebida amarga.

Fica a meu critério decidir em qual
Pecado incidirei.
Mas a necessidade de fazer uma escolha
Não é uma escolha,
É uma necessidade.

E não pecar não se encontra
Entre as alternativas.