(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Odisséia de um homem ridículo


-Marcelo de Campos Soares Dias
-Telefone?
-55 11 67589098
-Endereço?
-Até 1992, Rua Campos D'arte, 8657. Depois, até 1997, Rua Olga Maria Neves, 886. De 97 até -semana passada Rua Humberto Gomes Lima, 935. Até hoje, Avenida Leônidas de Mello, número 22.
-Referência para contato?
-Tia-avó, Maria Augusta, 11 55 67546543.
-Por favor, preencha este formulário na próxima meia hora e entregue-o na portaria 23, segundo corredor à esquerda.

“Nome: Marcelo de Campos Soares
Sobrenome: Dias
Telefone: 55 11 67589098
Endereço: Av. Leônidas de Mello, 22.
Número de protocolo: (Marcelo não tinha um número de protocolo)”.

-Por favor...
-Entre na segunda fila à esquerda, por favor.
-Por favor...
-Na segunda fila à esquerda, por gentileza.
-Por favor...
-Na segunda fila à esquerda, senhor.
Cenário: segunda fila à esquerda.
-Sim, dona Camélia?
-Oi querida, eu gostaria de pedir uma quinta via da minha carteira de identidade. Com a idade a gente vai perdendo as coisas, sabe? Outro dia mesmo fui à casa de minha sobrinha e deixei, imagine, querida! Deixei meus óculos sobre a pia! Sobre a pia, veja se pode! Ainda se fosse sobre a mesa, ou sobre algum criado mudo, mas sobre a pia, acredita, querida? Fui lavar o rosto e deixei meus óculos. Oh, como tenho medo da velhice, querida...
-Dona Camélia, a senhora sabe que...
-Oh sim, querida, eu conheço todos os procedimentos, sim. Mas você sabe, querida, estou tão cansada disso tudo. Será que não daria para adiantar um pouco toda esta burocracia? Outro dia mesmo vi no jornal que perdemos mais tempo nas filas dos serviços públicos neste país do que se gasta em qualquer lugar do mundo, imagine, querida, imagine! Como se eu tivesse tanto tempo sobrando. Oh, outro dia mesmo ligou-me minha filha dizendo “mãe, será que a senhora poderia ficar com o Pedro esta tarde?” Pedro é meu neto, querida, e claro, eu fui obrigada, imagine, obrigada a responder que não podia! Imagine. Eu, sabe minha querida, tenho uma agenda. E não consigo fazer coisas assim em cima da hora, será que não daria para adiantar um pouco tudo isso?
-Me desculpe dona Camélia, mas...
-Oras, não se desculpe, minha querida, não se desculpe, é seu trabalho, eu sei. Você deve seguir as ordens não é? É assim com todos nós ao fim. Todos seguimos as ordens de alguém, não é? Você segue as do seu chefe, eu sigo as suas, seu chefe deve seguir algumas também, talvez de uma mulher como você ou como eu. No fim todos seguimos regras, mas veja, sim, tente adiantar isso para mim, sabe que sou ocupada e que não posso ficar um dia inteiro aqui com você. Não me entenda mal, sim? Adoro sua companhia e adoraria recebê-la em casa. Você tem meu endereço, sim? Mas não posso ficar o dia todo aqui, entende, minha querida? Se nem conversar ou tomar conta do meu neto eu posso, que dirá ficar numa fila o dia todo, não é assim, querida? Deve haver alguma maneira, tenho 65 anos, você sabe, temos alguns direitos.
-Senhora, por favor vá para a fila à sua direita depois de preencher este formulário.
-Oh, mas minha querida, não acabei de lhe dizer que deixei meus óculos sobre a pia da casa de minha filha, não? Ia pegá-lo de volta se tivesse recebido meu querido neto, mas não pude entende, e não estou com meus óculos aqui comigo, querida.
-A senhora pode pedir ajuda a um de nossos assistentes, alí à direita.
-Oh, sim, claro. Muito obrigada, querida, você foi de muita ajuda, isto sairá mais rápido desta vez, não é? Obrigada querida, você é sempre muito gentil, querida. Até mais.
-Até, dona Camélia. Próximo por favor.
-Sou eu.
-Sim, é você. Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias, mas...
-Telefone?
-55 11 67589098, mas, por favor...
-Sim?
-Eu preciso de um número de protocolo.
-Oh, porque não disse logo? Vê aquela placa à sua esquerda? Aquela é a fila para protocolos. -----Próximo, por favor.
Cenário: fila para protocolos.
-Por favor...
-Final da fila, senhor.
-Sim, mas por favor...
-Sim, senhor?
-Aqui é a fila para protocolos, sim?
-Sim. Final da fila, senhor.
-Nome?
-Adelina da Cruz Santos Alves.
-Aqui está, obrigada.
-Nome?
-Álvaro Dias.
-Você estregou o papel verde preenchido?
-Sim, mas não com o selo.
-Ah, claro. Por que fazem isso? Um instante. Paaaaaulo, a pasta 12. O nome de novo, por favor.
-Álvaro Dias.
-Aqui está, quarta fila à direita, depois da placa laranja. Próximo.
-Sou eu.
-Nome?
-Moça, antes...
-Nome, por favor?
-Marcelo de Campos Soares Dias, mas não...
-Não o quê, meu senhor?
-Eu gostaria de um número de protocolo, por favor.
-Sim, todos nesta fila, se o senhor puder fornecer o seu CPF e me dizer o assunto do seu protocolo, poderei lhe fornecer o número, é claro.
-Meu CPF é _ e o assunto é uma segunda via da carteira de trabalho.
-Desculpe, mas o senhor leu a placa?
-Lí, sim senhora.
-E o que leu?
-Protocolos.
-Pois não, e leu também “carteiras de trabalho”?
-Não senhora.
-Então pegue a quinta fila à direita, depois da placa laranja, e retire o formulário azul, volte aqui em seguida, sim?
-Sim, senhora.
Cenário: quinta fila à direita.
-Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias.
-Assunto?
-Segunda via de carteira de trabalho, preci...
-O senhor perdeu a anterior?
-Sim.
-Irresponsável. Assine aqui, aqui e nesta folha por favor.
-Aqui está.
-Preencha este formulário, sim, e entregue para mim.

“Nome: Marcelo de Campos Soares
Sobrenome: Dias
Telefone: 55 11 67589098
Endereço: Av. Leônidas de Mello, 22.
Último local de trabalho: Farmamil Farmácia LTDA, 1999”.

-Obrigada. Aqui, leve este formulário ao quinto guichê à esquerda, depois da placa laranja, sim?
-Obrigado.
Cenário: quinto guichê à esquerda , depois da placa laranja.
-Nome?
(Entrega do formulário)
-Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias.
-Idade?
-47
-Estado civil?
-Solteiro.
-Filhos?
-Três.
-Idade dos filhos?
-13, 10 e 9.
-Altura?
-1,80.
-Peso?
-98 quilos.
-Alguma deficiência?
-Míope.
-Quantos graus?
-Três no olho direito, dois no esquerdo.
-Não classificamos como deficiência, a menos que se tenha de nove graus para mais.
-Não sabia.
-Alguma outra deficiência?
-Não.
-Atividade profissional que exerce?
-Vendedor.
-Há quantos anos?
-12.
-Assine aqui, aqui e nesta folha, por favor.
-Pronto.
-Obrigada. Leve este, este e este papel para a fila de protocolos, sim?
-Obrigado.
-Cenário: fila de protocolos.
-Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias
-Documentos?
-Aqui.
-Número 857.653.826-8
-A senhora pode anotar?
-857.653.826-8
-Obrigado.
-Marcelo completa o primeiro formulário e vai para a portaria 23.
-Cenário: portaria 23.
-Formulário?
-Aqui.
-Que documento o senhor precisa?
-Segunda via de carteira de trabalho.
-Primeira via perdida?
-Sim.
-Irresponsável. Número para cancelamento?
-Um instante. 184.68.
-Cancelada, sua segunda via sai e dez minutos, queira aguardar no fim da fila com esta ficha, sim?
-Obrigado.
-A ficha, senhor?
-Aqui.
-Sua segunda via, obrigado por aguardar, a prefeitura de São José do Bom Jesus de Piraciba deseja um bom dia.

- Desculpe, acho que é a sua senha.
- Oh, é mesmo, muito obrigado.

- ... Esta agora é boa! Dormir em repartições públicas.

sábado, 28 de novembro de 2009

Acidente no mar



"My library
Was dukedom large enough."
[The Tempest, 1. 2]

Nascia atrás de um monte um sol azul escuro e frio
E nuvens de concreto paraivam sobre o mar
Foi numa noite dessas que dentro de um navio
Pude ver com frio o mar a mim se armar
E numa onda bravia e furiosa de Netuno,
lançou-se o oceano contra minha embarcação
E tive, respirando, a impressão da morte
E na sacola ao ombro carregava o coração.

Há muito o coração fora deixado.

Um vento furioso atingiu em cheio minhalma
E eu vi num clarão um raio fúnebre
Atingiu rápido as águas e a eletricidade
Se espalhou por sobre as brumas
Como a escuridão que se lança das sombras
E é detida pela luz do sol.

Gritava furiosamente, eu.
E nada me ouvia, além do meu coração
Na sacola, guardado na sacola.

Os gritos do mar, porém, todos ouviam,
e fui noticiado no jornal:
homem morre depois de acidente no mar,
suspeita-se de suicídio.

Mas ninguém também aí ouviu meu grito
Para todos raiava um sol verde concreto.
Para todos as nuvens eram de aço
E a luz era a das televisões.

Para ninguém havia meu mar,
A fúria, o desespero, o medo.
Para ninguém havia
Tudo aquilo que eu sentia tanto.
Porque dentro de cada alma viva
Só dominava a quietude desesperada
Do desassossego.

- Com licença, eu vou descer no próximo ponto...

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Te Vivo

meados de 2007


"Quem não ama demais
não ama o bastante".
(Bussy Rabutin)

Te Vivo em cada momento consciente
E em cada sonho que dá tempo de sonhar
Te Penso em cada simples não-pensar
Em cada lágrima, em cada gargalhar.

Te Vivo meu amor, luz da minha’lma
Te Vivo inteira e completamente
Te Vivo em cada sol que raia em brilho
E Te Vivo em cada sombra e sol poente

Te Bebo em cada gole de água fria
Em cada passo, em cada mão, em cada olhar
Te Sonho, minha fada, com magia
Te Vivo em tua boca e em teu beijar

Te Vivo, meu amor, a todo instante
Agora e depois e eternamente
Te Vivo como amigo. E como amante
Te Vivo muito mais completamente.

Te Toco com meus lábios e palavras
Te Tenho em minha boca e em minhas mãos
Te Sinto com todos meus sentidos
Te Sou com esta minh'alma e o coração

Te Vejo em cada rosa, em cada flor
Te Espero em cada pétala em semente
Te Quero no perfume e no calor
Te Amo, meu amor, sinceramente.

Te Vivo, meu amor, mais que a mim mesmo
Te Vivo em toda vida que há em mim
Te Vivo em cada sempre deste tempo
Te Vivo em todo início e todo fim.

Te Vivo e te quero cá comigo
Em cada pessoa conhecida, em cada amigo.
Te Vivo e na lembrança em que te trago,
Te Vivo com ternura em cada afago

Te Amo, mais, Te Vivo, meu amor
Te Vivo na raiz de cada flor.
E em cada sempre que tenho dentro em mim
Te Vivo eternamente, sempre assim.

O encontro de dois olhares

inícios de 2008



E meio assim
Que sem saber
Como quem não sabe a imensidão dos mares
Me decidi
Por aceitar
O encontro de dois olhares
E o que te li
De Shakespeare
Não é um quarto dos calares
Que eu te vi
A transmitir
Quando observo os teus pensares
E ainda não sei
Quero saber
Se quem me viu foi você
Ou se o querer
Me fez te ver
Antes de você perceber
E só é tu
Ai, Capitu...
E nesse amor,
Quem sabe inteiro,
Vou descobrir
Quem foi
Que olhou
Primeiro.

Despercebido

(Finais de 2007)


Era como se não
tivesse sido jamais
(O. Montenegro)

Os beijos, as cartas, as canções
Era como se nunca tivessem existido
E o amor que devotávamos a nós
Passou assim, como que despercebido.

A vontade, a sede, a ânsia, a devoção,
Cada gosta indefinida de paixão
O tremor, a coragem, o agarrar das nossas mãos
“Nunca houve”, sussurra o coração.

E a energia que movia nossas noites e manhãs
Cessou, quando quiserdes, de existir.
Mas também cessou meu mais sincero choro,
E, rimando, meu mais sincero rir.

E no passar do tempo deixei ir
Toda a magia que antes nos sentíamos
E se ia toda minha alegria,
Com todos nossos beijos, nossos risos.

E um dia acordei aliviado,
Respirei e deixei a vida entrar.
Era morto eu e o passado
Quando me atrevi a nos lembrar.

Era morto cada nada e cada isso
Cada pouco e cada sempre de nós dois
E como Cristo que do pútrido nasceu
O nosso amor renascerá depois.

Mas enquanto não é assim,
Enquanto tenho de esperar,
Que nada seja como foi.
Ou que seja como se não há.

Enquanto tenho que ver passar o tempo,
E esquecer o que já te é esquecido,
Que todos os teus risos passem sérios,
E o meu tremor passe, assim, despercebido.