(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

sábado, 24 de outubro de 2009

Poema a um Mestre



Era semente e te vi, raio de sol,
a bater e obrigar-me: acorda.
Abri meus olhos e te percebi melhor
Eras meu pai, meu irmão, meu amor.

Com coragem doada pela terra,
Mãe, base e fonte, me levantei.
Frente a frente você me teve,
Frente a frente você me olhou.

De cada brisa da noite senti o prazer
E a dor proibidos às plantas novas
E virgens.

Das estrelas eu vi cada segredo,
A lua me sussurrou seus versos,
A grama me contou as lendas do mundo,
As pedras, as tristezas dos homens.

Mas eu não era homem, eu era planta,
Eu era folha, caule, raiz.

E depois de cada noite de segredos,
você surgia.
Eu nunca soube o que fazer quando te via.
Se me escondia, se me mostrava,
Você me enfeitiçava, eu me perdia.

Você me vigiou, alto e altivo,
Cada passo meu, e cada abalo,
Cada crise, cada crescimento.

Lancei raízes mais profundas,
Sofri mordidas mais intensas,
Sofri as secas, as chuvas,
Os ventos e as tempestades,
Para ver depois você, minha Luz.

E devagar, com medo até,
lancei aos teus pés tudo o que tinha.
Sem confiar ou pensar na dúvida,
Doei a ti o que tinha de melhor, meu... deus.

Me fiz botão.

E tua luz não se escondeu nenhum instante,
Pois que meu botão nasceu na primavera,
Era a primeira verdade que você me ensinava.

Tua luz me deu força,
Me deu coragem,
E a terra me deu tudo o que precisei.
Nunca, nunca eu poderia tirar meus pés da terra.
Mas algo de mim, com os ventos, teria de alcançar você,
para assim te contar do meu amor.

Me dobrando e me abrindo a ti,
Me dando mais a conhecer à tua onisciência,
Abri-me em flor branca, de branco perfume puro,
E lhe roguei, aos pés, condescendência.

Família - ê!

A prima que puxa a orelha da avó
Que brinca, que chora, que grita.
A tia que implica e empaca sem dó
O menino, pequeno, mimado, faz fita.

Era uma vez família perfeita.
Não, nunca houve, nem nas histórias.
E a perfeita nenhuma nunca é eleita, e
Faz parte das velhas memórias.

O primo bonito, o tio meio torto,
O avô que contava histórias tá morto.
A filha arrumada, vaidosa, lindinha
Tem uma orelha que é meio caída,
Que sob o cabelo alisado, tingido,
Passa quase que despercebida.

No fim da história não gosto, não quero,
Não chego perto e retiro da vida,
Mas dentro do abraço dos tios e da prima,
Só posso cantar: família querida.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Aroma doce da rosa branca
Em céu malhado de cinza
Porta de vidro sem tranca
Em casa vazia.

Relógia atrasado, por falta de bateria.
Última página, faltando um pedaço,
Que nem nos importaria.

Prédio vazio, sem morador,
Com guardas na portaria.
Velha sem netos, sem roupas novas,
Sem clientes, que sempre fia.

Roupa lavada, guardada, esquecida,
Cheiro de ontem, de omo, de amor.
Pétalas velhas das flores jogadas
Atrás da cortina, pro melhor ator.

Cartas não lidas, mas bem jogadas,
Astros que apontam a falha da sorte
Cada detalhe despercebido
São intermitências da morte.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

2016


É minha obrigação
Pedir perdão
Antecipadamente
Por descrever
A situação
Despoética da gente.

Ó, meu cidadão,
Valha-me Deus,
Me empreste teu ouvido.
Que quem não
Junta as letras
Não faz nada ter sentido.

Mais da grande parte
Da população
Só escreve o próprio nome
Ê, entende então
Por que razão
Tanto se morre de fome.

Ai, nessa nação
Cada mentira
Já nasce perdoada
E quem diz que não
No coração
Sabe que não disse nada.

Cada escola aqui
Tem mil lugares
E só tem cem estudantes
E não tem princípio
A sofridão
Da nação já nasceu antes

Mas ai, não chores não
E nem desiste,
Que no nosso mundo,
Morre chorando,
Até quem não nasce triste.

Vem, grita comigo,
Pede motivo,
Implora algum sentido.
E mesmo
Sem entender mais,
Entra no coro,
Viva os jogos mundiais!

E mesmo
Sem entender mais,
Entra no coro,
Ai, grita comigo,
Deixe as letras para trás,
Vem, com a multidão,
Sem ter razão,
Viva os jogos mundiais!