(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Canção numa teia

Teia_na_chuva.jpg

E eu, que tinha tantas esperanças
Aos poucos fui ficando sem nenhuma
Como um velho que contemplasse a própria sepultura
Que mandara fazer com tanto anelo.

Como um botão de lírio que ao brotar olhasse em volta
E só visse também as sepulturas
E esperasse um campo aberto, e verde, e vivo,
E só visse, também, mesmas injúrias.

Como um homem que acordasse inspirado
E descobrisse sua pena já ao meio,
E não achasse pedaço de papel em que escrever
E percebesse que a tinta já se foi.

Como um namorado que marcasse um casamento
E pela chuva, ele fosse cancelado.
Como um nadador que então se vê cansado
Depois de tantos metros de competição.

Eu não conseguiria respirar,
Como um mergulhador, que nadando de volta à superfície
Se supusesse já no ar, acima d'água
E tomando folego então visse
Que faltam ainda alguns mentros a passar.

Um inseto que voasse à sua flor
E em caminho, parasse numa teia
Vazia de aranha, só cheia de dor,
Como uma vida que é de tédio cheia.

Eu que plantava tantas flores
Aos poucos deixei de cultivar
As flores e esperanças dum amor
Dum botão que pudesse então brotar.

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