(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

domingo, 20 de dezembro de 2009

Poema (Só)Lírico


Havia música, eu lembro, e o quebra nozes!
Havia vida, e festa e convidados
E os meus sentidos estavam todos vidrados
Em cada uma de tuas metamorfoses.

Da menina que chegou, a prima e a irmã
À bailarina que chamou minha'tenção
Da dançarina que girava e de manhã
Ainda me deixava louco de paixão

Até tua respiração pude notar
Se transformando com o tempo e a canção
E dentro do meu peito, quase em oração
A música tocava em ritmo de palpitar.

O teu nome até hoje eu não sei
Não perguntei, ninguém me disse, e eu não descobri
A impossibilidade me persegue, e eu te segui
E descobri onde mora, isso eu já sei.

A espessura dos teus lábios eu ganhei
E adivinhei com meus olhos anuviados
Cada milímetro teu eu já abracei
E te vi em mil sonhos acordados.

E nas pálpebras ficou tua impressão,
E me lembro, nos lábios, teu sabor.
E o frio de agora faz lembrar o teu calor,
E todo o tempo, em minha pele, a tua mão.

sábado, 19 de dezembro de 2009

A morena e a flor

~~~.~~~

Te via nua, morena,
numa rede ao lado de mim
E era pedir muito, pena,
que não caísse uma flor, e assim
Não te cobrisse em pudor
Cada fonte recondida de amor.

Era pedir muito, morena,
Não querer que se escondesse dos meus olhos
Tua boca, os teus lábios, os teus seios.
Era pedir muito, pequena,
Querer-te sempre a espera do meu beijo.

E o vento, como um pai para uma filha,
Te cubriu de pétalas de flor
E aos poucos, um lençol de rosas
Te fez inteira virgem de rubor.

Ai, morena,
Minha sede foi a chuva quem matou.
A tua, o orvalho da manhã.
Minha fome era de vida, morena,
Tua fome era maçã.

Ai, doce menina,
Minha saudade machucava o peito,
Tua inocência acordava o sol.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Canção numa teia

Teia_na_chuva.jpg

E eu, que tinha tantas esperanças
Aos poucos fui ficando sem nenhuma
Como um velho que contemplasse a própria sepultura
Que mandara fazer com tanto anelo.

Como um botão de lírio que ao brotar olhasse em volta
E só visse também as sepulturas
E esperasse um campo aberto, e verde, e vivo,
E só visse, também, mesmas injúrias.

Como um homem que acordasse inspirado
E descobrisse sua pena já ao meio,
E não achasse pedaço de papel em que escrever
E percebesse que a tinta já se foi.

Como um namorado que marcasse um casamento
E pela chuva, ele fosse cancelado.
Como um nadador que então se vê cansado
Depois de tantos metros de competição.

Eu não conseguiria respirar,
Como um mergulhador, que nadando de volta à superfície
Se supusesse já no ar, acima d'água
E tomando folego então visse
Que faltam ainda alguns mentros a passar.

Um inseto que voasse à sua flor
E em caminho, parasse numa teia
Vazia de aranha, só cheia de dor,
Como uma vida que é de tédio cheia.

Eu que plantava tantas flores
Aos poucos deixei de cultivar
As flores e esperanças dum amor
Dum botão que pudesse então brotar.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Traduzindo Bandeira

Resolvi tomar vergonha e começar a traduzir. Tenho medo de que isso só me dê mais vergonha. O original do poema abaixo é o em português, do Manuel Bandeira. A tradução é minha, com o perdão do início de trabalho.

SONETO INGLÊS Nº 2 – Manuel Bandeira

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então

Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

~~~~~~.~~~~~~

ENGLISH SONNET Nº2 – Manuel Bandeira (Trad. Gabriel Salomão)

To accept the undeserved castigation
Not for weakness but for pride
In the most profound misery your lamentation
Change for who did it on a hateful cry.
The luxuries of flesh and thinking
With which the species' instinct does fool us
Underrate for the unselfish feelings
Of the simplest of human affections.
Not to shiver for fear or hope
Nothing ask or fancy that is not
The bravery of being a further pope
Lacking faith on a world beyond this orb. And so

To die without a tear, 'cause life
Doesn't worth the pain and sorrow of the lifetime.


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Odisséia de um homem ridículo


-Marcelo de Campos Soares Dias
-Telefone?
-55 11 67589098
-Endereço?
-Até 1992, Rua Campos D'arte, 8657. Depois, até 1997, Rua Olga Maria Neves, 886. De 97 até -semana passada Rua Humberto Gomes Lima, 935. Até hoje, Avenida Leônidas de Mello, número 22.
-Referência para contato?
-Tia-avó, Maria Augusta, 11 55 67546543.
-Por favor, preencha este formulário na próxima meia hora e entregue-o na portaria 23, segundo corredor à esquerda.

“Nome: Marcelo de Campos Soares
Sobrenome: Dias
Telefone: 55 11 67589098
Endereço: Av. Leônidas de Mello, 22.
Número de protocolo: (Marcelo não tinha um número de protocolo)”.

-Por favor...
-Entre na segunda fila à esquerda, por favor.
-Por favor...
-Na segunda fila à esquerda, por gentileza.
-Por favor...
-Na segunda fila à esquerda, senhor.
Cenário: segunda fila à esquerda.
-Sim, dona Camélia?
-Oi querida, eu gostaria de pedir uma quinta via da minha carteira de identidade. Com a idade a gente vai perdendo as coisas, sabe? Outro dia mesmo fui à casa de minha sobrinha e deixei, imagine, querida! Deixei meus óculos sobre a pia! Sobre a pia, veja se pode! Ainda se fosse sobre a mesa, ou sobre algum criado mudo, mas sobre a pia, acredita, querida? Fui lavar o rosto e deixei meus óculos. Oh, como tenho medo da velhice, querida...
-Dona Camélia, a senhora sabe que...
-Oh sim, querida, eu conheço todos os procedimentos, sim. Mas você sabe, querida, estou tão cansada disso tudo. Será que não daria para adiantar um pouco toda esta burocracia? Outro dia mesmo vi no jornal que perdemos mais tempo nas filas dos serviços públicos neste país do que se gasta em qualquer lugar do mundo, imagine, querida, imagine! Como se eu tivesse tanto tempo sobrando. Oh, outro dia mesmo ligou-me minha filha dizendo “mãe, será que a senhora poderia ficar com o Pedro esta tarde?” Pedro é meu neto, querida, e claro, eu fui obrigada, imagine, obrigada a responder que não podia! Imagine. Eu, sabe minha querida, tenho uma agenda. E não consigo fazer coisas assim em cima da hora, será que não daria para adiantar um pouco tudo isso?
-Me desculpe dona Camélia, mas...
-Oras, não se desculpe, minha querida, não se desculpe, é seu trabalho, eu sei. Você deve seguir as ordens não é? É assim com todos nós ao fim. Todos seguimos as ordens de alguém, não é? Você segue as do seu chefe, eu sigo as suas, seu chefe deve seguir algumas também, talvez de uma mulher como você ou como eu. No fim todos seguimos regras, mas veja, sim, tente adiantar isso para mim, sabe que sou ocupada e que não posso ficar um dia inteiro aqui com você. Não me entenda mal, sim? Adoro sua companhia e adoraria recebê-la em casa. Você tem meu endereço, sim? Mas não posso ficar o dia todo aqui, entende, minha querida? Se nem conversar ou tomar conta do meu neto eu posso, que dirá ficar numa fila o dia todo, não é assim, querida? Deve haver alguma maneira, tenho 65 anos, você sabe, temos alguns direitos.
-Senhora, por favor vá para a fila à sua direita depois de preencher este formulário.
-Oh, mas minha querida, não acabei de lhe dizer que deixei meus óculos sobre a pia da casa de minha filha, não? Ia pegá-lo de volta se tivesse recebido meu querido neto, mas não pude entende, e não estou com meus óculos aqui comigo, querida.
-A senhora pode pedir ajuda a um de nossos assistentes, alí à direita.
-Oh, sim, claro. Muito obrigada, querida, você foi de muita ajuda, isto sairá mais rápido desta vez, não é? Obrigada querida, você é sempre muito gentil, querida. Até mais.
-Até, dona Camélia. Próximo por favor.
-Sou eu.
-Sim, é você. Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias, mas...
-Telefone?
-55 11 67589098, mas, por favor...
-Sim?
-Eu preciso de um número de protocolo.
-Oh, porque não disse logo? Vê aquela placa à sua esquerda? Aquela é a fila para protocolos. -----Próximo, por favor.
Cenário: fila para protocolos.
-Por favor...
-Final da fila, senhor.
-Sim, mas por favor...
-Sim, senhor?
-Aqui é a fila para protocolos, sim?
-Sim. Final da fila, senhor.
-Nome?
-Adelina da Cruz Santos Alves.
-Aqui está, obrigada.
-Nome?
-Álvaro Dias.
-Você estregou o papel verde preenchido?
-Sim, mas não com o selo.
-Ah, claro. Por que fazem isso? Um instante. Paaaaaulo, a pasta 12. O nome de novo, por favor.
-Álvaro Dias.
-Aqui está, quarta fila à direita, depois da placa laranja. Próximo.
-Sou eu.
-Nome?
-Moça, antes...
-Nome, por favor?
-Marcelo de Campos Soares Dias, mas não...
-Não o quê, meu senhor?
-Eu gostaria de um número de protocolo, por favor.
-Sim, todos nesta fila, se o senhor puder fornecer o seu CPF e me dizer o assunto do seu protocolo, poderei lhe fornecer o número, é claro.
-Meu CPF é _ e o assunto é uma segunda via da carteira de trabalho.
-Desculpe, mas o senhor leu a placa?
-Lí, sim senhora.
-E o que leu?
-Protocolos.
-Pois não, e leu também “carteiras de trabalho”?
-Não senhora.
-Então pegue a quinta fila à direita, depois da placa laranja, e retire o formulário azul, volte aqui em seguida, sim?
-Sim, senhora.
Cenário: quinta fila à direita.
-Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias.
-Assunto?
-Segunda via de carteira de trabalho, preci...
-O senhor perdeu a anterior?
-Sim.
-Irresponsável. Assine aqui, aqui e nesta folha por favor.
-Aqui está.
-Preencha este formulário, sim, e entregue para mim.

“Nome: Marcelo de Campos Soares
Sobrenome: Dias
Telefone: 55 11 67589098
Endereço: Av. Leônidas de Mello, 22.
Último local de trabalho: Farmamil Farmácia LTDA, 1999”.

-Obrigada. Aqui, leve este formulário ao quinto guichê à esquerda, depois da placa laranja, sim?
-Obrigado.
Cenário: quinto guichê à esquerda , depois da placa laranja.
-Nome?
(Entrega do formulário)
-Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias.
-Idade?
-47
-Estado civil?
-Solteiro.
-Filhos?
-Três.
-Idade dos filhos?
-13, 10 e 9.
-Altura?
-1,80.
-Peso?
-98 quilos.
-Alguma deficiência?
-Míope.
-Quantos graus?
-Três no olho direito, dois no esquerdo.
-Não classificamos como deficiência, a menos que se tenha de nove graus para mais.
-Não sabia.
-Alguma outra deficiência?
-Não.
-Atividade profissional que exerce?
-Vendedor.
-Há quantos anos?
-12.
-Assine aqui, aqui e nesta folha, por favor.
-Pronto.
-Obrigada. Leve este, este e este papel para a fila de protocolos, sim?
-Obrigado.
-Cenário: fila de protocolos.
-Nome?
-Marcelo de Campos Soares Dias
-Documentos?
-Aqui.
-Número 857.653.826-8
-A senhora pode anotar?
-857.653.826-8
-Obrigado.
-Marcelo completa o primeiro formulário e vai para a portaria 23.
-Cenário: portaria 23.
-Formulário?
-Aqui.
-Que documento o senhor precisa?
-Segunda via de carteira de trabalho.
-Primeira via perdida?
-Sim.
-Irresponsável. Número para cancelamento?
-Um instante. 184.68.
-Cancelada, sua segunda via sai e dez minutos, queira aguardar no fim da fila com esta ficha, sim?
-Obrigado.
-A ficha, senhor?
-Aqui.
-Sua segunda via, obrigado por aguardar, a prefeitura de São José do Bom Jesus de Piraciba deseja um bom dia.

- Desculpe, acho que é a sua senha.
- Oh, é mesmo, muito obrigado.

- ... Esta agora é boa! Dormir em repartições públicas.

sábado, 28 de novembro de 2009

Acidente no mar



"My library
Was dukedom large enough."
[The Tempest, 1. 2]

Nascia atrás de um monte um sol azul escuro e frio
E nuvens de concreto paraivam sobre o mar
Foi numa noite dessas que dentro de um navio
Pude ver com frio o mar a mim se armar
E numa onda bravia e furiosa de Netuno,
lançou-se o oceano contra minha embarcação
E tive, respirando, a impressão da morte
E na sacola ao ombro carregava o coração.

Há muito o coração fora deixado.

Um vento furioso atingiu em cheio minhalma
E eu vi num clarão um raio fúnebre
Atingiu rápido as águas e a eletricidade
Se espalhou por sobre as brumas
Como a escuridão que se lança das sombras
E é detida pela luz do sol.

Gritava furiosamente, eu.
E nada me ouvia, além do meu coração
Na sacola, guardado na sacola.

Os gritos do mar, porém, todos ouviam,
e fui noticiado no jornal:
homem morre depois de acidente no mar,
suspeita-se de suicídio.

Mas ninguém também aí ouviu meu grito
Para todos raiava um sol verde concreto.
Para todos as nuvens eram de aço
E a luz era a das televisões.

Para ninguém havia meu mar,
A fúria, o desespero, o medo.
Para ninguém havia
Tudo aquilo que eu sentia tanto.
Porque dentro de cada alma viva
Só dominava a quietude desesperada
Do desassossego.

- Com licença, eu vou descer no próximo ponto...

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Te Vivo

meados de 2007


"Quem não ama demais
não ama o bastante".
(Bussy Rabutin)

Te Vivo em cada momento consciente
E em cada sonho que dá tempo de sonhar
Te Penso em cada simples não-pensar
Em cada lágrima, em cada gargalhar.

Te Vivo meu amor, luz da minha’lma
Te Vivo inteira e completamente
Te Vivo em cada sol que raia em brilho
E Te Vivo em cada sombra e sol poente

Te Bebo em cada gole de água fria
Em cada passo, em cada mão, em cada olhar
Te Sonho, minha fada, com magia
Te Vivo em tua boca e em teu beijar

Te Vivo, meu amor, a todo instante
Agora e depois e eternamente
Te Vivo como amigo. E como amante
Te Vivo muito mais completamente.

Te Toco com meus lábios e palavras
Te Tenho em minha boca e em minhas mãos
Te Sinto com todos meus sentidos
Te Sou com esta minh'alma e o coração

Te Vejo em cada rosa, em cada flor
Te Espero em cada pétala em semente
Te Quero no perfume e no calor
Te Amo, meu amor, sinceramente.

Te Vivo, meu amor, mais que a mim mesmo
Te Vivo em toda vida que há em mim
Te Vivo em cada sempre deste tempo
Te Vivo em todo início e todo fim.

Te Vivo e te quero cá comigo
Em cada pessoa conhecida, em cada amigo.
Te Vivo e na lembrança em que te trago,
Te Vivo com ternura em cada afago

Te Amo, mais, Te Vivo, meu amor
Te Vivo na raiz de cada flor.
E em cada sempre que tenho dentro em mim
Te Vivo eternamente, sempre assim.

O encontro de dois olhares

inícios de 2008



E meio assim
Que sem saber
Como quem não sabe a imensidão dos mares
Me decidi
Por aceitar
O encontro de dois olhares
E o que te li
De Shakespeare
Não é um quarto dos calares
Que eu te vi
A transmitir
Quando observo os teus pensares
E ainda não sei
Quero saber
Se quem me viu foi você
Ou se o querer
Me fez te ver
Antes de você perceber
E só é tu
Ai, Capitu...
E nesse amor,
Quem sabe inteiro,
Vou descobrir
Quem foi
Que olhou
Primeiro.

Despercebido

(Finais de 2007)


Era como se não
tivesse sido jamais
(O. Montenegro)

Os beijos, as cartas, as canções
Era como se nunca tivessem existido
E o amor que devotávamos a nós
Passou assim, como que despercebido.

A vontade, a sede, a ânsia, a devoção,
Cada gosta indefinida de paixão
O tremor, a coragem, o agarrar das nossas mãos
“Nunca houve”, sussurra o coração.

E a energia que movia nossas noites e manhãs
Cessou, quando quiserdes, de existir.
Mas também cessou meu mais sincero choro,
E, rimando, meu mais sincero rir.

E no passar do tempo deixei ir
Toda a magia que antes nos sentíamos
E se ia toda minha alegria,
Com todos nossos beijos, nossos risos.

E um dia acordei aliviado,
Respirei e deixei a vida entrar.
Era morto eu e o passado
Quando me atrevi a nos lembrar.

Era morto cada nada e cada isso
Cada pouco e cada sempre de nós dois
E como Cristo que do pútrido nasceu
O nosso amor renascerá depois.

Mas enquanto não é assim,
Enquanto tenho de esperar,
Que nada seja como foi.
Ou que seja como se não há.

Enquanto tenho que ver passar o tempo,
E esquecer o que já te é esquecido,
Que todos os teus risos passem sérios,
E o meu tremor passe, assim, despercebido.

sábado, 24 de outubro de 2009

Poema a um Mestre



Era semente e te vi, raio de sol,
a bater e obrigar-me: acorda.
Abri meus olhos e te percebi melhor
Eras meu pai, meu irmão, meu amor.

Com coragem doada pela terra,
Mãe, base e fonte, me levantei.
Frente a frente você me teve,
Frente a frente você me olhou.

De cada brisa da noite senti o prazer
E a dor proibidos às plantas novas
E virgens.

Das estrelas eu vi cada segredo,
A lua me sussurrou seus versos,
A grama me contou as lendas do mundo,
As pedras, as tristezas dos homens.

Mas eu não era homem, eu era planta,
Eu era folha, caule, raiz.

E depois de cada noite de segredos,
você surgia.
Eu nunca soube o que fazer quando te via.
Se me escondia, se me mostrava,
Você me enfeitiçava, eu me perdia.

Você me vigiou, alto e altivo,
Cada passo meu, e cada abalo,
Cada crise, cada crescimento.

Lancei raízes mais profundas,
Sofri mordidas mais intensas,
Sofri as secas, as chuvas,
Os ventos e as tempestades,
Para ver depois você, minha Luz.

E devagar, com medo até,
lancei aos teus pés tudo o que tinha.
Sem confiar ou pensar na dúvida,
Doei a ti o que tinha de melhor, meu... deus.

Me fiz botão.

E tua luz não se escondeu nenhum instante,
Pois que meu botão nasceu na primavera,
Era a primeira verdade que você me ensinava.

Tua luz me deu força,
Me deu coragem,
E a terra me deu tudo o que precisei.
Nunca, nunca eu poderia tirar meus pés da terra.
Mas algo de mim, com os ventos, teria de alcançar você,
para assim te contar do meu amor.

Me dobrando e me abrindo a ti,
Me dando mais a conhecer à tua onisciência,
Abri-me em flor branca, de branco perfume puro,
E lhe roguei, aos pés, condescendência.

Família - ê!

A prima que puxa a orelha da avó
Que brinca, que chora, que grita.
A tia que implica e empaca sem dó
O menino, pequeno, mimado, faz fita.

Era uma vez família perfeita.
Não, nunca houve, nem nas histórias.
E a perfeita nenhuma nunca é eleita, e
Faz parte das velhas memórias.

O primo bonito, o tio meio torto,
O avô que contava histórias tá morto.
A filha arrumada, vaidosa, lindinha
Tem uma orelha que é meio caída,
Que sob o cabelo alisado, tingido,
Passa quase que despercebida.

No fim da história não gosto, não quero,
Não chego perto e retiro da vida,
Mas dentro do abraço dos tios e da prima,
Só posso cantar: família querida.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Aroma doce da rosa branca
Em céu malhado de cinza
Porta de vidro sem tranca
Em casa vazia.

Relógia atrasado, por falta de bateria.
Última página, faltando um pedaço,
Que nem nos importaria.

Prédio vazio, sem morador,
Com guardas na portaria.
Velha sem netos, sem roupas novas,
Sem clientes, que sempre fia.

Roupa lavada, guardada, esquecida,
Cheiro de ontem, de omo, de amor.
Pétalas velhas das flores jogadas
Atrás da cortina, pro melhor ator.

Cartas não lidas, mas bem jogadas,
Astros que apontam a falha da sorte
Cada detalhe despercebido
São intermitências da morte.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

2016


É minha obrigação
Pedir perdão
Antecipadamente
Por descrever
A situação
Despoética da gente.

Ó, meu cidadão,
Valha-me Deus,
Me empreste teu ouvido.
Que quem não
Junta as letras
Não faz nada ter sentido.

Mais da grande parte
Da população
Só escreve o próprio nome
Ê, entende então
Por que razão
Tanto se morre de fome.

Ai, nessa nação
Cada mentira
Já nasce perdoada
E quem diz que não
No coração
Sabe que não disse nada.

Cada escola aqui
Tem mil lugares
E só tem cem estudantes
E não tem princípio
A sofridão
Da nação já nasceu antes

Mas ai, não chores não
E nem desiste,
Que no nosso mundo,
Morre chorando,
Até quem não nasce triste.

Vem, grita comigo,
Pede motivo,
Implora algum sentido.
E mesmo
Sem entender mais,
Entra no coro,
Viva os jogos mundiais!

E mesmo
Sem entender mais,
Entra no coro,
Ai, grita comigo,
Deixe as letras para trás,
Vem, com a multidão,
Sem ter razão,
Viva os jogos mundiais!

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Chá da tarde




Eu respirava o ar da tua boca
Você nunca notava e me perdia
E me batia e se perdia me atirava
E se atirava eu me escondia e me chorava

E a flecha embebida de veneno
Que perfurava, me furava e atravessava
Era ainda incômodo pequeno
E eu ainda me feria e porque amava

Eu perseguia tuas pegadas num terreno
De cacos de vidro ensaguentados
Mas mesmo meu temor era pequeno
O sangue era expurgar os teus pecados
Com meus pés, teu alívio ameno,
Era o vermelho a cor do ser amado

Sob um lençol de estiletes revirados
Me mexia em completo pesadelo
E teu sonho leve era um grande desespero
Para o meu interior, tão desvelado

Você já conhecia cada parte
Cada linha, cada sombra, cada pelo
E teus cílios de água viva, em meus anelos
São meus amores, os meus beijos a queimar-te.

Você me foge, e me ficam as lembranças
Queimaduras no meu corpo de criança
Cada espelho que me tem reflete meu horror
E eu me olho,
no meu banho,
vermelho,
águas de amor.

E eu me olho,
no meu banho,
vermelho,
águas de amor.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

cadafalso



Força a poesia
Como quem força um filho
Com o corpo todo
Dos pés à alma.

Deixa-se doer e machucar
Deixa sair teu sangue com tua cria
Deixa que te mutile teu poder criador
Em nome da criatura que pode te matar

A dor do parto é a dor da morte
Porque é vida que se dá
É a luz, e não só à luz que se dá.

Então força a poesia com teu suor, tua lágrima, teu sangue e teu sêmen.
E deixa que ela escorra de ti, que ela socorra de ti, que ela corra de ti.
Que ela exploda de ti.

Permite que o teu cansaço seja a energia dela
A poesia não pede amor, nem sentimento algum.
Ela quer tuas letras, tua tinta e tua alma.
Não pensa nos teus gostares, pensa nos teus poderes.

Dá a ela o que ela quer, como a um monstro e a uma mãe.
Nega a ela o que não queres dar, como a um cão e a uma filha.

Pari tua patricida
Chora teu reflorescer
Esconde os olhos da feiura do recém nascido
Lava tua poesia, limpa-a, e então sorri e a afaga enquanto ela te morde.
E depois, se for bela, agradece-te a tua competência.
Por que de tudo o que se fez, só a beleza dela importa.
O que se perdeu, o que se deu, o que lhe foi roubado, nada é teu.
Só a beleza dela importa.

É teu o poder, ela é tua criatura e tende a crescer e dominar-te
Tende a crescer e devorar-te
Tende a fazer de tudo, a devorar tudo, a transformar tudo
Em pureza, em brilho, em som, em parte
Tende a fazer de tudo grão, poeira, vento, tende a calar-te.
E deseja mais que à vida, tua vida, deseja mais a arte.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009


Meu mundo não é esse de fora das capas.
É o de dentro, mas não é o das letras,
É o de dentro.
Mas de dentro mesmo.

domingo, 6 de setembro de 2009

Novelo


Nesta vida não ganha prêmio quem age bem (ninguém age bem).
Quantos foram os que vi darem com a cara no muro
Por serem bons e retos e certos e justos?

Dá-se bem quem tem que se dar
Sem haver a justiça ou a falta dela
Porque tudo é a mesma coisa desagradável.

Quanto reclamam, meus amigos, das vidas que têm desde o nascimento.
A chamam-na de tudo, e como mais alto insulto, de injusta.
Digo-lhes com um sorriso meio corro...ído no rosto:
-Graças a Deus, não é?
E eles concordam em constrangido silêncio imóvel,
Porque todos já meteram-se em mais erros do que poderiam pagar na vida que lhes sobra.

E meus amigos são sábios e santos, como quaisquer amigos de qualquer um qualquer,
Pois quem não cometeu tantos erros
Não é mais que quem não os admite.
E é tão sujo! Tanto-quanto.