(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Mainardi, o Lula é sua anta.

Caro Mainardi,

 

são interessantes as críticas que você faz ao Presidente Lula e ao seu governo, assim como o é boa parte das colunas que você escreve. Nunca neguei que você fosse competente em relação ao que faz com mais freqüência, e não pretendo fazê-lo agora. Nas próximas linhas, irei criticar somente as palavras que você disse acerca de Dom Casmurro, o romance do genial Machado de Assis e a microssérie Capitu, de Luis Fernando Carvalho. Palavras estas com as quais não concordo em absoluto. Comecemos pela coluna.

Transcreverei partes de seu texto aqui, para que possamos raciocinar juntos.

 

Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel.

O homem que aparece na série e a quem você critica a caracterização não é Bentinho, é Dom Casmurro, e há aqui uma diferença importante. Sua crítica seria cabível se Bentinho fosse caracterizado de maneira assim caricatural, mas Dom Casmurro é assim, ao menos em seu interior. É um homem que vive isolado da sociedade, preso ao passado, amigo de prostitutas e que precisa “reatar as duas pontas da vida” e tenta-o de diversas maneiras, não obtendo sucesso, é um homem que só falhou. Foi, pensa, traído, seu filho vive, por seu esforço, longe dele. Não é um homem como os outros de sua época, não tem parentes vivos nem amigos que lhe sejam queridos, mergulhou na melancolia e na descrença de um velho decrépito e decepcionado com a vida. É natural, portanto, que numa microssérie feita à maneira de teatro, retrate-se o lado psicológico das personagens, inclusive em suas roupas.

 

É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem".

De fato, embora você tenha tentado fazer uma crítica por pura ignorância das características mais sutis de Bentinho, fez um elogio profundo à adaptação. De fato, a personagem foi ridicularizada, e não é para menos. Bentinho é um menino que, aos quinze anos, não sabe a diferença dos sexos e repete, na velhice, que muitos aos dezessete não o sabem. Por puro bom senso, sabemos que isso não foi verdade nem no tempo de Machado de Assis. Mas Bentinho é criança ainda na adolescência, e adolescente ainda na velhice, é natural e bom que seja ridicularizado, ele é genialmente ridículo.

 

No livro Dom Casmurro, o relato de Bentinho é espantosamente seco e desencantado. Ele narra sua história apenas para combater o tédio: sem drama, sem sentimentalismo, sem teatralidade.

Desencantado sim, já vimos porque, mas não no sentido que você atribuiu. Mas seco, não. Dom Casmurro faz paralelos com filosofia, teatro, poesia e religião. Não chame isso de secura, mas analisemos um pequeno, simples e sem importância trecho da obra, somente pelo seu valor estético:

 

“Não é que prima Justina fosse de biocos; dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos.”.

 

Isto não é secura, não é economia de palavras. E o que você diz em seguida é ainda mais mentiroso e mal embasado. Dizer que D. Casmurro escreve para combater o tédio é o mesmo que dizer: “O lobo mau só se vestiu de velhinha porque gostava da fantasia”. Isto é o que Casmurro nos diz, não é o que deixa escapar e nem é a verdade pura, você teve a infelicidade de ser incrivelmente simplista nesta análise.

 

Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?...

 

Sem teatralidade, não é? Está bem, isso eu não discuto, Assis lhe desdisse por mim. Mas a passagem acima joga sua argumentação barata facilmente para escanteio. Se Dom Casmurro escreve somente por tédio, de onde vem a observação “Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras”. É casual, certo? Puro acidente narrativo, se não me engano. Mainardi, não seja casmurro ao ponto de achar que seu colega genial é tão inocente.

Como escrevi aí acima, não vou combater o sem drama, sem sentimentalismo, sem teatralidade.”, porque isso, qualquer um que leu o romance, ainda que sem atenção, sabe que não é verdade. Admira que você não o perceba, considerando que, eu espero, você leu a obra.

 

Quando Bentinho descobre que o filho bastardo de Capitu com Escobar morreu de febre tifóide, ele comenta simplesmente: "Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro".

Gosto de pensar, Mainardi, que o que ocorreu aqui foi uma simples manifestação da sua inabilidade de escolher a palavra certa para o que quer expressar. Dom Casmurro não comenta simplesmente, comenta friamente. E, embora sutil, a diferença entre as duas expressões é grande. Já que você se atreve a criticar o que não conhece, eu ousarei te dar um conselho: releia o que você escreve.

 

A literatura brasileira tem um escritor. Um só.

Não. A literatura brasileira teve vários escritores. Entre eles, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos que, cada um à sua maneira, contribuíram muito para a cultura nacional. Concordo, Machado pode ser o mais genial de todos eles, mas não é o único.

 

O que fizemos com ele, nos últimos cinqüenta anos, foi traí-lo com todos os Escobar que apareceram.

O que fizemos com ele, e o que fazemos com todos os escritores geniais, foi analisá-lo e adaptá-lo para diversas linguagens, na tentativa de entender e captar até onde foi sua genialidade e qual a profundidade da sua escrita. Se há erros, eles acontecem em todos os campos do conhecimento e com todos que tentam descobrir alguma coisa, mas traí-lo não. Estudá-lo seria uma palavra melhor.

 

Desde que Helen Caldwell, em 1960, negou o adultério de Capitu...

Verdade, negou. Mas o fez com muito mais base do que você menciona ao reafirmá-lo. Caldwell realizou, no mínimo, um grande trabalho de pesquisa para não só ler, se não toda, boa parte da obra machadiana, mas analisar as personagens e diversos trechos de vários dos escritos de Machado e também de diversas outras obras de teatro, poesia e religião. Não foi com base em menos que escreveu “O Otelo Brasileiro de Machado de Assis” e, se o livro é aceito até hoje por tantos especialistas em Machado como sendo uma importante análise de Dom Casmurro, é por ter muito de certo e aceitável, muito de influente e muito de revolucionário. Iniciativa ousada e talvez, não se sabe, errada, mas de todo modo, importante e extremamente influente. Deixe que autoridades em literatura maiores que a escritora critiquem seu trabalho.

 

A série Capitu festeja o abastardamento da obra machadiana. Machado de Assis sabe bem: de agora em diante, isso só pode piorar.

A minissérie festeja a possibilidade de levar ao conhecimento de uma maior quantidade de pessoas um pouco da obra de Machado e, quem sabe, incentivar muitas pessoas (como ocorreu com a criança de 11 anos, filha de um professor meu de Geografia) a lerem sua obra. Muitos não lêem Machado por não gostarem ou não entenderem. Muitos não lêem por faltar a apresentação formal e por não se ter contado a elas que o maior escritor da literatura brasileira pode ser divertido.

Duvido muito que Machado pense que isso só pode piorar, já que, por uma das pouquíssimas vezes que isso aconteceu, vi uma excelente adaptação para televisão de uma das melhores obras literárias do Brasil e, segundo Harold Bloom, do mundo.

Agora, ao Podcast.


É complicado começar a criticar o Podcast porque você se baseia nas palavras de um excelente – e misterioso – contista, cujas palavras eu não quero criticar. Mas a professorazinha do conto de Trevisan não está de todo errada em colocar em dúvida a suposta traição do livro.

 

O romance só faz sentido com o adultério. Sem ele, é um mau romance. Ou, citando mais uma vez Dalton Trevisan: "Se a filha do Pádua não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar."

O sentido do romance é independente do adultério. Não o seria se Machado fosse um escritor completamente realista (falando aqui sobre a escola literária), que se prende a traições, incestos, quebras de celibatos, enfim, temas recorrentes na segunda fase de Eça de Queirós, por exemplo. Mas Assis é maior que o realismo, é vezes superior à crítica barata feita pelos realistas/naturalistas. Incluo na crítica barata os grandes escritores realistas, como Tolstoi em Anna Karênina, ou Flaubert em Madamme Bovary, ou Eça de Queirós em Primo Basílio.

Machado de Assis consegue fazer um romance interessante mesmo sob o suspense da traição, mesmo tendo um final não conclusivo. São poucos os que conseguem e poucos os que entendem a existência do suspense finalizando a obra. Um outro professor meu disse, na primeira aula do ano: “Ninguém gosta do que não entende”.

 

Desde 1960, quando a brasilianista Helen Caldwell publicou um estudo sobre "Dom Casmurro", difundiu-se estupidamente a idéia de que Bentinho é um narrador suspeito.

Mainardi, todo narrador não onisciente é suspeito. Porque toda narrativa em primeira pessoa não onisciente é subjetiva, se há exceção, não conheço. Até mesmo Zé Fernandes – do romance A Cidade e as Serras, do Eça – é subjetivo e impõe suas opiniões. A diferença reside no fato de Zé Fernandes ser um narrador sem importância, não ser o centro da própria narrativa. Por vezes, quem conta um conto, aumenta um ponto. Quando o conto é sobre si mesmo, usualmente aumenta-se dois. Existe até a possibilidade de ser essa a crítica de Machado, mas é um palpite fraco e dispensável. O fato é que Caldwell tornou complexa a leitura de Dom Casmurro não porque o quisesse complicar, mas porque o entendeu em profundidade.

Se Capitu traiu ou não traiu não interessa, entende? Por mais que seja divertido discutir, não interessa. O ponto todo é que não se pode ter certeza, e reforço, o narrador não é o Bentinho, esse era um adolescente que não sabia a diferença entre os sexos. O narrador é Dom Casmurro, um velho solitário que recebe frequentemente prostitutas e nunca sai de casa... Não é bem o homem em cuja palavra eu acreditaria sem pestanejar.

 

O problema dessa idéia é o seguinte: desconfiar de Bentinho significa desconfiar de Machado de Assis.

É, é. E o personagem e o autor são sempre a mesma coisa, certo? Só um acervo de leituras muito pequeno pode formular esta conclusão, Mainardi. É o mesmo dizer que ou Machado escreveu Memórias Póstumas de Brás Cubas depois de morto ou Brás Cubas é um mentiroso e Machado também. Não é isso, Cubas é uma personagem e Memórias é uma ficcção, assim como Dom Casmurro. Por favor, não cometamos o erro primário de confundir criador e criatura.

 

Bentinho - o Bentinho de Machado de Assis - é um narrador perfeitamente ponderado. Os fatos relatados por ele pertencem a um passado remoto. Ele descreve os eventos de sua vida com um distanciamento absoluto.

“Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada”. Se isto não é uma declaração de amor, o que é? Por que, se há distanciamento e o passado é tão remoto, ele não amou a nenhuma outra? Por que, se os olhos de ressaca de Capitu são passado sem importância, impedem o narrador de se apaixonar novamente? E se são importantes, se isso é uma declaração de amor, ou de saudade, não há distanciamento absoluto. A emoção não permite tal distanciamento.

 

Seu ciúme desapareceu completamente. É só uma lembrança longínqua.

Quando sobre as despesas pagas por ele, do enterro do filho: “Pagaria o triplo para não tornar a vê-lo”. E depois: “Quando seria o dia da criação de Ezequiel?”. Se o ciúme é uma lembrança assim longínqua, porque tanta raiva? Se não há sentimento, não há motivo para aversão.

 

O Bentinho do tempo presente, que narra em primeira pessoa, sabe dizer o que é realidade e o que é fantasia.

Como qualquer narrador em primeira pessoa, Dom Casmurro (volto a frisar, o narrador é o velho solitário, não o adolescente que não diferencia os sexos) sabe dizer o que é realidade e o que é fantasia sob sua ótica. O mesmo faz o homem que conta a Conversa de Bois, que lhe foi contada por um cachorro do mato, para o narrador do conto em Sagarana, do Guimarães Rosa.

A realidade do narrador sempre é narrada por ele, como acontece em qualquer situação do dia a dia. Este caso é diferente dos contos narrados por Machado, nos quais ele faz o julgamento acerca das personagens. Dom Casmurro é o narrador de sua própria vida e, perdendo tudo e todos os que teve, não quer perder a boa imagem, que lhe resta por pouco.

 

Com o passar dos anos, sua mágoa e seu desespero se transformaram num estranhamento irônico.

Novamente sou eu que pergunto: se o último parágrafo da obra não é um desabafo dolorido e uma tentativa árdua de transformar em frieza sua auto piedade, o que ele é?

 

Bentinho resolve escrever suas memórias por tédio, para tentar ocupar o tempo. Em nenhum momento ele parece querer acertar as contas com Capitu.

Do tédio já conversamos antes, vamos ao acertar contas.

De fato, Dom Casmurro não quer acertar contas com Capitu, já o fez. Mandou-a para a Europa, isolou-a dos conhecidos, não a visitou nem respondeu suas cartas. Acertara todas as contas com Capitu quando começou a escrever sua obra, Dom Casmurro. As contas a acertar são consigo (“mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”) e com seu passado (“Deste modo, viverei o que vivi...”).

 

Depois de terminar "Dom Casmurro", ele se prepara para escrever outro livro: uma história dos subúrbios. Essa é a chave para compreender o romance. Olhando para trás, Bentinho se dá conta da mesquinharia de sua vida, de sua sociedade, de seu tempo.

Uma outra visão possível e, pela quantidade de especialistas que a apóiam, mais provável. É que olhou para a obra que tinha pronta e deu-se conta: “Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui”, como disse no início do livro ao se referir à casa. E tenta mais uma vez, a terceira, retornar ao passado por meio da História dos Subúrbios.

 

O que, no passado, tinha um aspecto mítico, como o adultério de Capitu, revela agora toda a sua miudeza.

Não é assim, Mainardi. Na última página do livro, Dom Casmurro frisa uma passagem das Eclesiastes, um dos livros do Velho Testamento bíblico, demonstrando em seguida que não morreu a certeza de que era justo seu ciúme e logo depois declara, com fina e saborosa ironia: “A terra lhes seja leve!”.

 

No auge de sua loucura, Bentinho se compara a Otelo. Mas o paralelo com o herói shakespeareano é usado por Machado de Assis apenas como contraponto para ridicularizar seu protagonista. Otelo está para Bentinho assim como os heróis dos romances de cavalaria estão para Dom Quixote.

É possível e, se for assim, toda a leitura de Dom Casmurro deve ser analisada mais uma vez, pois a obra é inteiramente uma ironia. Bento Santiago parece-se o tempo todo com Otelo, por vezes com Iago, com muito mais seriedade do que Quixote se assemelha à um herói. Cervantes desenha o Cavaleiro da Triste Figura, no caso de Dom Casmurro, é ele próprio que se constrói e narra, desenhando um homem que tenta dizer que venceu, que está bem, mas deixa escapar que falhou, errou e perdeu.

Não é possível comparar a intertextualidade existente em Dom Casmurro com a escandalosa, mas muito bem feita, ironia de Miguel de Cervantes.

  Capitu traiu Bentinho. E ela traiu porque Machado de Assis, em "Dom Casmurro", tinha um propósito: transmitir o legado de nossa miséria.

Ou Capitu (não) traiu Bentinho. E ela (não) traiu porque Machado de Assis, em “Dom Casmurro”, tinha um propósito: escrever um dos melhores livros da literatura brasileira indo muito além dos banais escritores do Realismo simples de sua época e envolvendo maus leitores na certeza de inocência ou culpa da vilã-heroína da obra.

 

Mainardi, continue escrevendo sobre o Lula, isso, aparentemente, você faz bem. Ele é sua anta. Luis Fernando Carvalho não, nem Helen Caldwell, nem Machado de Assis.

 

Atenciosamente,

Gabriel Salomão.

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