(Sim, sei, vocês não sabem de que estou falando porque a beleza desapareceu há muito tempo. Ela desapareceu sob a superfície do barulho - barulho das palavras, barulho dos carros, barulho da música - no qual vivemos constantemente. Está submersa como a Atlântida. Dela só restou uma palavra cujo sentido é a cada ano menos inteligível.)
[Milan Kundera]

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Sempre

Eu escuto o tempo todo:
    a língua não pode tudo.
    aquilo que gostaríamos de dizer é
               sempre
    i   n     a    t    i     n    g    í     v    e    l

Mas, mesmo gostando do silêncio
    como eu gosto.
Mesmo sabendo que há sentidos
     que só existem quando não
     se diz...
                 nada,          ainda assim

Eu quis acreditar que a língua
podia.        Tudo.

Ilusão.

São infinitas as vezes em que
   o que eu gostaria de dizer
            me               escapa e
   o que você não diz
            me               chega.
            Nítido. É
   que a língua não nos serve
          ela não se dá.

E tudo o que dizemos
    não chega à metade.

Queria que houvesse um jeito

de dizer. Te amo.

E quem ouvisse fosse
    o centro do teu peito.

Não há. Há pelo menos
teu ouvido. A ele apelo:

Diz a ela o que te digo
    faz com que ela escute
    no meio da vida

No coração da alma: Amor.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Valsa de Gaia

Tem a solidão do poeta, a paixão da chuva tardia
escultora da linha reta, que a luz percorre e esta via
salta do seu olho, é uma seta, o nascer do sol, mais um dia.

[A Fada Azul, Oswaldo Montenegro]

~

Como por obra de um narrador fantástico

Os ponteiros do relógio caminharam para trás.

Segundo por algum doce, segundo por segundo, se...

Se eu quisesse assim, bem devagar no tique e taque lento

e secreto, e carinhoso.


Um sol que desce para o leste

Uma lua que nasce mais cedo

A água de quem desesquece

Um afago pro poeta com medo.


Quase um traço de pintor ausente

Certo como quase nada por ser

Meus segredos, quase todos revelados

Sem palavra minha pra dizer.


Teu 'Sou' fia tudo em tua crença,

e se acredita hermético e sozinho

O sol tem sempre sua contraparte fêmea

Sua lua, sua estrela, sua terra. Gaia.

Passarinho.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Maria Montessori



Quero uma escola
Para o rosto infantil e torturado,
Para a esperança verdadeira e reprimida,
Para o esforço real e ignorado.

Quero uma escola
Para a vida possível e desejada,
Para o aprendizado livre e verdadeiro,
Para o ensino igual.

Quero uma escola
De busca e de alegria,
De perguntas e confiança,
De encontro e desafio.

Quero uma escola
De adultos e crianças,
De verdades e belezas,
Para a Paz e para a Vida.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Fragmentos de espiral


Todos os novos versos
as novas rimas
ou as novas ausências de rimas
são reedições de poemas antigos

todas as novas aventuras
são novidades falsas do que não houve
os novos interiores reescritos
os novos beijos iguais e tão molhados
quanto os do alto clero medieval
as novas transas iguais e tão molhadas
quanto as das freiras dos mosteiros espanhóis
todos os oxímoros confusões habituais
todas as frases de efeito
função fática
saída fácil
re-petição de piedade impressione-seporfavor

todos os novos erros justificados pela tentativa de mudar
são injustificáveis
porque são erros antigos repetidos

as qualidades cópias
os defeitos repetição
as palavras, rec-play
rec-play-rec... irrec-uperáveis
eternamente resgatados
repetidamente repetidos
rep RIP e ternamente

a poesia chegou ao seu extremo
ao seu delírio
à sua demência
à sua escultura
à sua desgrafia
à sua deseternidade fácil
à submersão no barulho
no silêncio
na imagem
no pisca-piscadasluzesestroboscópicas

mas este é seu curso natural
a sua pororóca
deprimente é o retorno da poesia
à sua inocência original
como uma prostituta
que se vista como uma princesa
ela se vê ridícula
mente bela
num mundo feio

ela retorna
as rimas retornam
os versos recontados tornam
a fazer novamente parte dos
poemas e as sequências de v
ersos são novamente contad
as para que tudo pareça cert
o num mundo errado em de
sespero, num mundo em qu
e cento e quarenta carácter
es são suficientes para mud
ar a vida de sabe-se lá quem

repete-se o que se diz em 1
40 caracteres, como se rep
ete o que se disse nos maio
res poemas do mundo, com
o se a beleza aos poucos pa
dessesse de um mal irrem
ediável: desenvolvimento.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Semáforos amarelos

Eu sonhei tanto

E tantas vezes tanto

E repetidamente o mesmo sonho e tanto

Que inevitavelmente

Havia de destruí-lo por dissolução no tempo


Por escadas de mil degraus é que se sobe

Ao infinito trampolim de desespero

E se sonhando a algum lugar se chega

É ao intermédio entre a escada e o salto ornamental


Cem mil pavios queimaram num instante

Toda a fé num profeta que não veio

Toda a esperança que já disse que não tenho

Todas as preces que eu nunca recitei


As estrelas cadentes caíram

Os trevos de quatro folhas murcharam

Ou foram comidos por pulgões famintos,

Ou atropelados por solas desatentas.


Num trem elétrico abandonei o campo

Os campos

E corri pelas avenidas infestadas

De luz, de almas penadas, de mil gritos,

E desesperei por tanto tempo

Que decidi, pacientemente,

Esperar.

Esperar tanto

Mas tantas vezes tanto

E repetidamente esperar tanto

Que a espera se dissolva no infinito.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Brinca, criança, brinca!

Vai, filho, brinca!
Chuta a bola do mundo, faze a bola rolar!

Que o mundo rola como uma esfera
num campo de futebol

de futebol, sim
chutada pelos menos cultos
pelos menos sábios,
pelos menos preocupados em descobrir a verdade

o mundo e a bola não têm uma ordem criança
têm o acaso. Nem o acaso tem.

Não pára criança, quê me ouve?
Eu disse que deves brincar!
Brinca!
Brinca!

Eu não posso sorrir, criança
mas brinca a divertir-me com as minhas memórias
de quando eu acreditava que chutava a terra
que chutava Júpiter!

E eu chutava uma bola criança,
só uma bola
de meia.

Brinca como quem acredita no que vê
como quem não sabe o que vê
como quem vê o que quer
como quem não liga
como que... "don't care"

"Play, child, play"

E eu saio, sem um urso,
de pelúcia,
sem uma bola a chutar,
saio na bola,
na terra,
não nas mãos da fortuna,
mas nos pés
de um destino
que não é preocupado
em obedecer as estrelas.


quarta-feira, 19 de maio de 2010

Vênus de Mim

Vênus de Milo ajudada pelo ângulo da luz,
Pétala de branca flor, acariciada pelo orvalho,
Garoa fina sobre um beijo apaixonado,
Mão que segue com medo a quem conduz.
_

Empresta-me por um só instante a alma
Num beijo encantador de dois instantes
Por um momento perde toda a tua calma
E te doa nos meus braços como amante

Num piscar de olhos, que se acabe.
Mas enquanto o olho pisca seja minha
Dá-me em despedida o beijo da minha vida
E depois se vá sozinha, e só, se cale.
(para me matar de dor).

Mas antes de ir seja só minha,
Antes de ir me dá teu ar,
Antes de ir respira em mim,
Antes de decidir estar sozinha.

Depois, se você não mais quiser teu beijo meu,
E preferir ser feliz longe daqui...

Mas ai, se você quiser ficar.
Vai que resolve nos fazer felizes
Você é a mulher bela que eu fiquei a procurar
O baú sem segredos, a esfinge.

Ah, Vênus de lis,

Vai ser a rosa mais branca e serenada de um jardim,
A musa bela dos poemas que não fiz,
A ausência de rasuras para mim.

Mas só se termina um beijo em um lamento,
E você será a minha vida tua,
Somente em um instante, por um momento,
Numa noite de garoas sob a lua.